O sábado começara como de costume aqui em casa: visita dos amigos e churrasquinho na calçada, regado a bons papos e boas risadas. Mas no fim de tarde, início da noite algo em mim começava a revelar os sinais que só agora compreendo. Uma certa irritação foi tomando conta do meu humor e minha vontade era de gritar para que todos fossem embora. Lembrei-me do único parto que eu tinha visto na vida – o da minha cadela Chica. Lembro que no dia de parir Chica se escondeu debaixo da caixa d’água e não deixou que ninguém chegasse perto dela, rosnando agressivamente para qualquer forma de carinho. Minha mãe que havia parido três filhos, logo entendeu e disse para a deixarmos só que ela iria parir em breve.
Fui ao banheiro, acho que por volta de umas 20h30min e notei minha calcinha encharcada. Liguei pra minha parteira Marilanda que me acalmou e disse que chegaria por volta das 22h. Liguei também para Mariana, enfermeira e amiga que participaria do parto. E embora eu estivesse ou achasse que estava calma, continuava irritada. Quando me vi, estava discutindo com meu marido e mandando meus amigos embora. A educação e todos os modos de conduta civilizados me abandonaram e virei uma espécie de bicho fêmea irritada que grita e expulsa os amigos de casa, sabe? (ainda bem que eram amigos, porque só eles podem entender essas coisas). Novamente me lembrei de Chica, minha cadela.
Depois de alguns berros e de exorcizar algumas tensões, acho que meu marido compreendeu o que se passava e veio me acalmar com aquele abraço forte de companheiro, amigo, amante. Ficamos nesse namorico de pazes até que chegaram Marilanda e Mariana (sem combinar, intuição de parteiras?). Marilanda me examinou e viu que eu estava com 1 de dilatação, bolsa rompida e que teríamos ainda um longo trabalho pela frente. O clima era de calma e de celebração. Liguei pra Gisele, grande amiga, que faria sua primeira “doulagem” no meu parto e, como ela vinha de longe, combinamos que ela só viria quando o TP estivesse mais intenso, para que não ficasse “muita gente” e acabasse inibindo o trabalho. Achávamos que teríamos ainda muito tempo...
De repente as contrações que eram fraquinhas começaram a ficar mais intensas. E aí, minhas lembranças já começam a ficar turvas. Imagino que isto fosse por volta das 23h. Creio que entrei numa espécie de transe e não consigo reconstruir cronologicamente os fatos. Tenho várias lembranças misturadas que tentarei registrar neste primeiro relato, pois acho que vou elaborar vários conforme as lembranças forem construídas e reconstruídas através dos relatos de amigos e das imagens do TP. Lembro de ir para o quarto e Marilanda pedir para que eu avisasse a cada contração. Iniciei alguns exercícios de alongamento e as contrações aumentavam. A cada contração eu gritava: “mais uma! Mais uma!”, como se celebrasse cada movimento do meu útero. Lembro de colocar uma música no Ney Matogrosso no computador e dançar. Meus movimentos me aliviavam e eu comecei a gostar de interagir com aquilo que era um misto de dor, força e prazer. Não sei quanto tempo se passou, mas lembro de Marilanda me dizer: “tenho boas notícias, você está com 6 de dilatação.” Ela pediu ao Vidal que me namorasse e ele estava incrivelmente encantador! Ele me dizendo coisas ao pé do ouvido, que eu estava linda e que ele estava morrendo de tesão! Ocitocina pura na veia!!!
Lembro de pedir para ligar pra Gi. Gisele foi uma figura de extrema importância na gestação e eu me sentia muito segura perto dela. Depois de algum tempo, Gigi chegou, creio que por volta das 02h e acho que eu já havia usado a bola que ela comprou especialmente pro meu parto. Ela chegou e disse: “é heavy metal, né?” e eu completei dizendo: “punk rock”. Gigi me tocou com uma massagem suave pelas minhas costas. Um enorme alívio!
Lembro ainda de querer ficar na posição “de quatro” quase o tempo todo, me ajudava muito nas contrações. Lembro das várias mãos me abraçando sem me invadir em momento algum. E por mais que Marilanda tivesse feito vários toques ao longo do TP para ver minha dilatação, eu não lembro de nenhum deles, de tão suaves e respeitosos que foram. Lembro de caminhar pelo meu quarto apoiada pelos braços da minha parteira e me sentir segura naquela viagem, imaginando que estava no caminho certo, mesmo que eu não soubesse onde iria chegar ou quanto tempo faltava para percorrer o caminho. Era como navegar. Lembro de Mariana cantar um ponto de Oxossi em meus ouvidos e de me sentir muito bem cuidada e segura. Lembro de agachar com muita força e quase sentir meu filho saindo de minhas entranhas. Fiz este movimento repetidas vezes e Jorge não vinha... Tentamos banheira, bola, manobras deitada na cama, Vidal segurando meus seios e me beijando em franco trabalho de parto e nada.
Marilanda já havia dito que Jorge apresentava uma bossa, um inchaço na cabeça e parecia ser isto que dificultava a vinda de Jorge. Ele tinha que fletir a cabeça para coroar e nascer, mas Jorge não parecia nada interessado em abaixar a cabeça para ninguém. Me sentia extremamente cansada, me faltavam forças e parecia que eu não conseguia mais expandir meus músculos para além de onde já tinha chegado. Foi, então, que um fator determinante apareceu: o coração de Jorge variou. E Marilanda não titubeou: propôs a ida ao hospital. Jorge entrou em sofrimento e não havia o que arriscar. Topei na hora! Não para aliviar a dor ou o cansaço, mas porque confiava obstétrica e afetivamente na minha parteira.
Curioso que uma consulta antes, Marilanda havia me feito esta pergunta: e vc já pensou numa segunda opção, se tivermos que ir pra um hospital, como é que você se setiria? Não, eu não havia pensado. Para mim estava claro que meu filho nasceria em casa e pronto. Mas, quando ela me fez (intuitivamente talvez) esta pergunta, a primeira coisa que pensei foi: eu confio no trabalho dela, se for preciso um hospital é porque é realmente necessário, porque eu sabia que ela faria tudo pra respeitar as minhas vontades sem desrespeitar as de Jorge.
Nos aprontamos e partimos para a Maternidade Ferndando Magalhaes, em São Cristóvao, acho que era 05:40 da manhã (Jorge nasceu às 06:01, e eu moro no centro da cidade, ou seja, voamos!). Dentro do carro, lembro de ver o pavilhão de São Cristovão. Eu sentia muita vontade de fazer força e repetia isto a todo momento. Chegando a maternidade, entramos em disparada e caminhei até a primeira cadeira que encontrei. Sentia muita, mas muita vontade de fazer força enquanto me perguntavam dados como onde vc mora, nome do pai, da mãe, e blá blá blá. Respondi a tudo que podia automaticamente e só queria fazer força e mais nada. Fui colocada em uma cadeira de rodas e em seguida Marilanda apareceu ao meu lado e isto me deixou muito segura diante da arrogante burocracia e frieza com os “profissionais da saúde” haviam me recebido no hospital. A médica de plantão quase deu um ataque quando me viu quase parindo e sem ter os dados burocráticos: quem é esta menina, quem a deixou subir? Isto é uma bagunça! – gritava ela, desesperadamente despojada de seu posto de poder burocrático. O bate-boca ainda durou alguns momentos enquanto a médica me preparava para o parto. Pensei: gente, será que ela não pode discutir isto depois e só fazer o parto. Me sentia desrespeitada, incomodada, mas só pensava na força que eu queria fazer e em Jorge. Mari deu as coordenadas à médica: dilatação 9, Jorge com um bossa e numa posição difícil. A médica, mais preocupada em estabelecer relações de poder, parecia não estar nem aí. Quando soube que eu vinha de um trabalho de parto domiciliar, uma das médicas, acho que a pediatra comentou irônica e desrespeitosamente: “ah, parto domiciliar, já sei, coisa de natureba!”. Com as forças que me restavam, pedi mais respeito pelas minhas opções porque ela não tinha o direito de falar assim. Marilanda pediu que eu me acalmasse e voltasse minhas atenções para Jorge. Dito e feito. Lembro do frio do povedine escorrendo pelas minhas pernas, anestesia, episiotomia, intervenções indesejadas que eu em queria saber de questionar naquele momento. Só sentia vontade de fazer força. A força aumentando. Marilanda me pediu para segurar os ferros da cama na parte debaixo e fazer força. Vi alguém colocar o cotovelo sobre minha barriga. Uma: sentia meu filho “descer” dentro de mim; duas: uma sensação estranha, eu podia senti-lo se aproximando; três: muita força, muita força; e na quarta tentativa, às 06:01h da manhã, Jorge nasceu e um misto de alivio e prazer tomaram conta de mim. Ele estava lá, havíamos nascido juntos.
Jorge foi segurado pelos pés como uma salsicha, todo esticadinho, tadinho, levado para a limpeza entes de vir para os meus braços. Novamente lembrei da minha cadela e de como ela lambia a cria para limpá-los. Eu queria segurar Jorge assim mesmo “sujo”, porque tudo era parte de mim.
Os pontos foram uma eternidade e minhas pernas não agüentavam mais aquela posição. Quando acabou fui pra uma cadeira de rodas esperando um leito. Eu não agüentava ficar sentada por conta dos pontos da episio e me sentia fraca. Só queria me deitar confortavelmente com meu filho, mas isto não parecia interessar a ninguém no hospital, afinal era troca de plantão, disse a enfermeira, e não havia gente para me atender no 6º andar, de modo que eu teria que esperar mesmo. Marilanda deixou a enfermaria convidada grosseiramente a se retirar, me deu um abraço e foi. Cumplicidade. Meu marido entrou em seguida e foi o primeiro a segurar Jorge. Paternidade. Colocou Jorge nos meus braços e nos olhamos pela primeira vez em 9 meses. Amor.
A enfermeira colocou algo no meu soro e quando questionamos o que era, disse que era analgésico e não sei mais o que? Meu marido ainda tentou questionar o que era o mais o que? Mas, aquela altura do campeonato, era melhor deixar tudo assim mesmo. Eu só precisava deitar. Como eu não estava com meus exames de sangue, eles recolheram uma amostra na hora do parto e disseram que eu teria que esperar o resultado para poder amamentar meu filho. Assim que mudamos de sala, desobedeci e levei Jorge ao peito, que mamou avidamente! Que sensação maravilhosa! O resultado dos exames do hospital estamos esperando até hoje...
Fomos para a enfermaria, onde ficamos seqüestrados por 2 dias, mesmo que eu estivesse me sentindo super bem, algumas horas depois do parto. Protocolo do hospital, me repetiam, como se fosse isto uma verdade incontestável. Enfim, preciso de um relato só para o pós parto. Mas já adianto aqui, que lá as mulheres ficam sozinhas, que visita de enfermeiro é raridade e de médico só uma vez ao dia. De modo que assim que acordei, quando a anestesia saía, senti uma vontade enorme de fazer xixi e não havia ninguém para me acompanhar até o banheiro. Estava fraca e com muita, muita fome! Tentei chamar pelo enfermeiro diversas vezes, até que não resisti e urinei na minha própria cama, ajeitando Jorge ao meu lado para que não se molhasse. Somente quando o enfermeiro resolveu aparecer é que pude tomar um banho e recuperar as forças e a dignidade. Um absurdo que as mulheres fiquem lá sozinhas e proibidas de usar celular (do que será que eles tem medo, celulares com câmera? curioso...).
Obviamente, não podemos negar a eficiência ou a competência da equipe do hospital. Não é isso. Mas sim contestar este modelo médico paternalista que vê a mulher como um objeto que pode ser tocado com frieza, invadido, sem voz nem vez. A vigilância sanitária que queria tanto fechar a Casa de Parto de Realengo não vê as condições péssimas de higiene que se encontram os banheiros das enfermarias das maternidades? Não vêem mulheres que acabaram de parir só tem direito a receber 3 garrafas de água de 500 ml por dia, o que dá 1,5l, sendo que o mínimo para o ser humano são 2l de água por dia? Não vêem que é impossível alguém parir naquelas condições hospitalares, tomando remédios que deixam a gente fraca no pós parto, saírem andando como se tivessem tido um parto natural? Parto hospitalar não é natural, será que ninguém da saúde enxerga isto? Ou será que estamos mais preocupados com a guerra de poder e dizer quem tem ou não tem o comando sobre a vida e a fisiologia alheia?
Parto domiciliar? Sim, e sempre! E aos que lamentam que não deu certo esta minha “idéia maluca” de parto domiciliar porque não enxergam o processo, só o resultado final, respondo: não deu certo né? Não deu certo poder dilatar sem remédios sintético nenhum? Não deu certo poder me sentir à vontade com pessoas queridas? Não deu certo ser protagonista do meu trabalho de parto, namorar meu marido e pai do meu filho e ter liberdade para fazer o que quiser? Não de certo sentir que parir pode sim ser um grande prazer!
A única coisa que mudaríamos é o Hospital. Na próxima, teremos uma equipe humanizada e acolhedora para nos atender caso precisemos.
É isto.
p.s: Jorge é leão com ascendente em leão, não baixaria a cabeça por nada neste mundo! rs
Um grande abraço a todos!
Kate,
ResponderExcluiro seu relato é vivo. A sua obstinação é vida!
O assustudor é a prática hospitalar. É com ela que temos que nos haver. Mandei seu relato para Mário Luiz Gama, que um jovem diretor da Maternidade Carmela Dutra e de bons propósitos.
Teu narrar nos faz viver contigo na alegria e na dor.
Beijos no Jorge, guerreiro teimoso.
Edmar Oliveira
emocionante!
ResponderExcluire3u que já estou quase com a Joana nascendo, esperando apenas a vontade dela, gostei muito de ler sobre o seu.
beijogrande a você
ao Vidal
e especialmente ao Jorge.
Vanessa
Kate, pude acompanhar um pouco da tua gestação, comemorei o nascimento de Jorge, vi algumas fotos, foi tudo muito legal e emocionante!
ResponderExcluirTe admiro muito e confesso que seu relato não deixou nada a desejar, principalmente no quesito emoção. Quase chorei.
Um beijo e continue relatando suas experiências de nova mamãe!
Beijos pra vcs!
Kate, você consegue ser ao mesmo tempo doce e forte. coisa rara. bonito demais de se ver numa pessoa. Sorte grande de Vidal e Jorge terem você por perto.
ResponderExcluirmeu carinho,
cilene
Deu certo tudo rsrs
ResponderExcluire como bom crítico e vivente que será, ja nasceu denúnciando e fazendo algazarra . Ele devia era está dando grandes risadas por dentro ddessa algazarra politicada toda e dizendo:
- Tá bom, Natureba ou Clinico, isso vocês resolvem depois. Mas me bota no mundo rsrs
Amiga, muito emocionante o seu relato. Sempre admirei a coragem de vcs (Gigi tb). Pois acho que ser mãe é coisa pra quem tem vocação e coragem.
ResponderExcluirUma pena que não tenha sido totalmente como vc queria, mas que bom que foi em parte...
E o mais importante é que vc e Jorge se saíram muito bem.
Estou combinando com Ricardinho e Fernandinha para irmos visitar vcs.
Beijos
Sou sua fã
kate,acabei de ler o seu relato e adorei, viu? O Jorge não poderia vir por melhores mãos que não fossem as suas, pois és guerreira e claro, mãe de um guerreiro!
ResponderExcluirFiquei emocionada e chocada também em ver o certo descaso com o que a alguns (ainda bem que alguns)profissionais da saúde vêm lidando com nossas gestantes...enfim, como você mesma disse: só mudaria o hospital. Pois que seu parto foi EMOCIONANTE! Seu processo de gestação foi lindo...tudo deu certo sim! E fico feliz em poder ter acompanhado um pouquinho deste "trabalho" lindo! Parabéns a você e ao Vidal! E um VIVA ao jorginho!
Bjuuu da amiga
Kelly
Que relato incrível e que triste o tratamento no hospital. Talvez um plano B mais trabalhado aliviaria um pouco estas intervenções. Mas coo dizem por aí, a gente só aprende vivendo.
ResponderExcluirPs: Sou leonina, com Libra e Ascendente em Leão. Leoninos são ótimos e modestos...rs
kate show de bola! Adorei o relato, no meu caso foi só anestesia, faca, e pronto, nasceu! Gostaria ter alguma coisa emocionante pra contar...rrsrsrs
ResponderExcluirAcho que a emoção rolou mesmo na gravidez, eu com a pressão nas alturas...
Parabénsw milvezes mais, inclusive pela coragem! Bjs.
Kate querida, fico muito feliz de ver seu relato - tão político-poético... Acho que nossas experiências com a saúde pública servem pra nos estimular a querer ainda mais lutar por uma mudança de postura frente à mulher, à getação e o parto. Estamos juntas nessa luta! E que nossas próximas crias - estou quase certa de que elas virão - venham em nossas casas, sem sustos e com todo o amor e aconchego de nossos amigos e familiares. Salve, salve Jorge! Guerreirinho lindo e duplamente rei, né? Leão com leão? Prepare-se... rsrsr! Mil beijos amaternados!
ResponderExcluirLindooooo!
ResponderExcluirSeu leãozinho é um leãozão.
Adorei dele não baixar a crista, o ponto pra Oxossi, sua coragem e a sensualidade de tudo.
Parabeéns!
Eu fiz uma cesariana, não tive dilatação, contração, nenhuma dor. O hospital ainda ñ havia sido inaugurado e meu medico foi um lorde... foi muito reconfortante e não aconteceram estas burocracias. segurei a Nina ainda com sangue, placenta e tudo e dei de mamar assim que acordamos... Muito horripilante o tratamento que vocês tiveram.
Ufffaaaaaa!!!!!!!!
ResponderExcluirQue sufoco...
Show de bola, a vida é feita de altos e baixos e quando é assim, a vitória fica mais gostosa.
Salve Jorge, garoto lindo e cativante... Fale pra todos que ele só acalmou comigo... rsrsrs.
Vida é felicidade e criança sempre trás felicidade.
Salve Vidal, Kate e Jorge.
Beijo no coração de vcs.